sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Fadiga

Fadiga é o tema que está presente em quase todos os blogs de esclerose múltipla. Diz a literatura que cerca de oito em cada 10 pessoas com esclerose múltipla se sentem sempre muito cansadas.


Eu não pretendo falar de pesquisas sobre fadiga nem dar informações médicas muito aprofundadas. Na verdade, a medicina não sabe muito sobre isso. Quero falar da minha fadiga, para que as pessoas próximas a mim saibam do que eu estou falando quando digo que estou fatigada.

Fico bem chateada quando falo do meu cansaço e ouço “eu também estou cansado”, como uma expressão de desprezo pelo meu sintoma ou desconhecimento do que se trata. Todo mundo fica cansado, mas há uma diferença entre o cansaço de alguém com EM e o cansaço de uma pessoa saudável. A fadiga da EM geralmente não está associada com a quantidade de trabalho que se faz. Às vezes eu me sinto cansada mesmo depois de uma boa noite de sono. Faço um pequeno esforço e fico fatigada como se esse esforço tivesse sido muito maior e muito mais prolongado. Então, quando falo da fadiga, não estou falando do cansaço por ter trabalhado muito, por ter passado uma noite acordada ou por ter me exercitado demais. Estou falando de uma incapacidade.

Quem tem uma doença crônica luta com seus sintomas o tempo todo e não basta se esforçar mais para superá-los. Há uma diferença entre se esforçar e ultrapassar seus limites. Esforçar-se é bom e necessário, mas ultrapassar seus limites pode levar alguém com EM a precisar de um tempo maior ainda para se recuperar de ter se excedido. Quando eu levo a fadiga ao nível da exaustão, posso precisar de até uma semana para me recuperar.

Tenho fadiga quando eu cozinho, quando caminho, fadiga no pilates, fadiga ao acordar, fadiga no meio da manhã, à tarde, fadiga no trabalho, fadiga no passeio... Quando está calor, a fadiga é maior. Minha frase favorita para explicar isso é: você não sabe o que é a fadiga até que tenha que parar para descansar depois de tomar banho. Ou durante o banho.


Reconheço em mim três tipos de fadiga: 1. Fadiga generalizada, que aparece principalmente nos dias mais quentes e vem como uma falta de energia para realizar as atividades cotidianas e para o trabalho; 2. Fadiga muscular, que ocorre quando eu faço um esforço como caminhar mais do que 5 minutos ou cozinhar mais do que 15 minutos, e minha musculatura fica fraca; 3. Fadiga mental, que acontece com o uso mais intenso das funções cognitivas, como dar aula, escrever, ou uma conversa intelectual, e surge como um “branco” no pensamento.

Para conviver com a fadiga, tenho que planejar cuidadosamente cada atividade do dia para que possa economizar energia para fazer todas elas. Para cada atividade, tenho que perguntar “quanta energia isso vai gastar?”. Algumas adaptações são para a vida toda: não posso ficar muito tempo em pé; não posso andar muito; não posso me expor ao calor; preciso de períodos de descanso; não consigo fazer muitas coisas ao mesmo tempo e nem fazer coisas cansativas por um tempo prolongado... Providenciei a carteira de portador de EM pela Associação Brasileira de Esclerose Múltipla. Ela é útil para utilização de scooter motorizado em shopping centers e também pode me garantir prioridade em filas. Procuro me sentar sempre que eu posso. Procuro levar uma vida mais tranquila, em um ritmo mais lento. É importante dizer isso para as pessoas que convivem comigo e explicar para elas que eu tenho uma doença crônica que me limita, mas que não me impede de sair e me divertir.

Voltando ao cansaço das pessoas saudáveis, não quero menosprezá-lo. Apenas quero salientar que quando digo que estou fatigada, eu me refiro a uma fadiga incapacitante, que deve ser entendida como uma deficiência, não nos moldes da incapacidade motora, mas da falta de força.  

Assumo, então, que tenho uma deficiência. É uma deficiência invisível, mas muito cruel, já que afeta as atividades mais básicas do dia a dia.

Outro dia eu estava no PS conversando com um médico que tentava me convencer a fazer dieta anti-inflamatória e tomar alguns suplementos alimentares porque minha fadiga poderia ser hipotireoidismo. Agradeci a boa intenção. Eu faço tratamento em um centro de referência. Se houvesse algum medicamento ou dieta que pudesse ajudar, certamente eles recomendariam. 

Quando eu fui diagnosticada, foi um alívio saber que minha fadiga tinha uma causa, e que não era depressão. Acho que procurar alternativas para melhorar a fadiga é como negar um sintoma que está lá e para o qual não há remédio, porque ele é um signo da evolução da doença - uma doença crônica e progressiva. É melhor aprender a conviver com ela.










quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Oto


‘Oto’ é o apelido de Otávio Henrique, o cachorro doido. O nome ‘Otávio’ foi escolhido pelo meu sobrinho Fernando, ‘Henrique’ foi sugestão da veterinária madrinha dele e o apelido foi a tia Ana quem escolheu. Como vocês podem perceber, nada disso é responsabilidade minha.

No dia 24 de novembro, Oto completa 6 anos, mas continua uma criança alimentada por bateria de lítio – não cansa nunca quando o assunto é brincar. Ele corre atrás da bolinha com uma velocidade que chega a voar sobre os degraus da escada! Minha sala tem sempre brinquedos pelo chão, que eu sou obrigada a jogar para ele pegar. Cinco horas da tarde ele me lembra que é hora de descer para jogar bolinha na quadra.

Não passeio com ele na rua porque tenho o equilíbrio bem comprometido e seus puxões já me levaram ao chão mais de uma vez, então brinco com ele na quadra do prédio. Quando posso, eu o levo para caminhar em locais onde ele possa andar sem coleira. 

Dizem que o cão é o retrato do dono. No caso do Oto, ele é bem o inverso de mim: ansioso e elétrico. Já pensei que sou uma péssima tutora para ele, que ele precisa de alguém mais ativo do que eu. Já pensei em doá-lo para quem pudesse fazer com ele as atividades que ele precisa. Aí, quando ele deita a cabeça no meu colo, eu lembro que precisamos um do outro. Ele precisa de uma pessoa mais calma para não se quebrar nas estripulias que faz, precisa dos meus cuidados e do meu carinho. Eu preciso da energia dele para me tirar da fadiga, para ir brincar na quadra mesmo quando estou me arrastando. 

Quando fico doente, ele dá um jeito de precisar de cuidado – come alguma coisa não comestível, se machuca em alguma caçada, quebra uma unha... Eu penso: por que tenho um cachorro tão maluco? Já sei! É para não ficar doente!































quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Avaliação neuropsicológica

Esse é o assunto mais difícil para falar sobre minha relação com a EM. É o que me assusta mais, meu maior fantasma, muito maior do que a cadeira de rodas: o déficit cognitivo.

As alterações cognitivas da EM envolvem alteração de memória, dificuldade com organização e planejamento, lentidão do pensamento e dificuldade de manter atenção. Coloco abaixo um artigo do dr. Guilherme Olival sobre o assunto.

Talvez eu não devesse expor um tema tão delicado, já que esse é o sintoma menos perceptível da EM, mas é o mais doloroso para mim, causa de meu isolamento social e provavelmente será o motivo de minha aposentadoria precoce. Como diz a blogueira Bruna Rocha (http://esclerosemultiplaeeu.blogspot.com.br/), dor compartilhada é dor diminuída.

Há tempo eu percebo que minha memória vai mal. Antes do diagnóstico, eu achava que isso era causado pelo antidepressivo. Também notava, desde o primeiro surto, uma dificuldade na atenção. Esses sintomas foram piorando e junto com eles uma lentidão no pensamento e nos reflexos e alguns problemas de linguagem – do tipo não conseguir formular bem os argumentos.

O que está acontecendo ultimamente é que dar aulas está muito difícil. Mesmo com as estratégias que eu uso – escrever as aulas, me manter descansada no dia de dar aula – eu faço tanto esforço para me lembrar dos conteúdos e para articular os pensamentos, que na metade da aula estou exausta (depois escrevo mais sobre o trabalho).

As dificuldades cognitivas se misturam com a fadiga e há momentos em que minha cabeça deixa de funcionar. Se eu me esforço muito, dá um branco e a fadiga é tão intensa que eu não consigo conversar e fico cambaleando.

Resolvi fazer uma avaliação neuropsicológica para ter uma medida objetiva de meu problema. Isso poderá me servir caso eu resolva me aposentar, mas servirá também para tornar “real” o que é subjetivo. Essa objetividade faz uma diferença psicológica enorme para quem lida com uma doença invisível. Por piores que possam ser os resultados, eles estão aí, eu os sinto diariamente. Ver a cara do monstro é melhor para pensar em como enfrentá-lo do que negar sua existência.

Não terminei ainda de fazer a avaliação e tenho a dizer que é muito difícil se deparar com os piores sintomas assim, “de baciada”.  A psicóloga que faz os testes é muito gentil e respeita os limites de minha fadiga, mas há vezes em que saio de lá meio atordoada por perceber esses sintomas. Tento respirar fundo e penso: “eu conheço esses sintomas, mantenho meu cérebro em atividade, não vou me deixar deprimir por isso...”.

Se eu pudesse falar com o demônio que inventou essa doença, pediria: “mande a cadeira de rodas, mas devolva meu cérebro!”. Mas não há essa barganha. Os sintomas vão progredindo juntos.

Saio do meu teste neuropsicológico, venho para casa, tomo um café, dou frutas para os pássaros do bosque e mando um what’s app para meu psicólogo: “hoje foi difícil!”. Choro um pouco e recomeço. Devagar e sempre!






O dr. Guilherme Olival publicou esse artigo no seu site (http://www.esclerosemultipla.med.br/a-esclerose-multipla-vai-afetar-a-minha-inteligencia/):


A RELAÇÃO ENTRE A ESCLEROSE MÚLTIPLA E SUA INTELIGÊNCIA
Hoje um paciente meu se deparou com sua avaliação neuropsicológica. Essa avaliação neuropsicológica, para quem não conhece, avalia a forma como a Esclerose Múltipla pode afetar a inteligência, separada por cada uma de suas esferas: como atenção, memória, velocidade, etc. Sempre que um paciente realiza um teste sobre a própria inteligência, isso gera muita ansiedade sobre o resultado.
Se o paciente com esclerose múltipla tem um fantasma que o assombra, ele é a cadeira de rodas. Quando o médico pede um teste sobre a inteligência, é como se o paciente se deparasse com um novo inimigo, que ainda era desconhecido para ele. Um inimigo terrível!
E por quê é necessário realizar uma avaliação neuropsicológica? A esclerose múltipla afeta a inteligência? A memória? Causa demência?

Em primeiro lugar ela não causa demência! Mas a esclerose múltipla pode sim afetar a inteligência ou cognição, que é o termo técnico para se referir.
Em 1991, o Dr. Stephen Rao, da Universidade de Wisconsin publicou uma pesquisa no revista “Neurology” que mostrou taxas de 43% de alteração em avaliação neuropsicológica. A comunidade científica ficou em alvoroço com essa pesquisa, pois são taxas altíssimas, e foram feitas diversas críticas que culminaram com a formação de um grupo internacional com o objetivo de pesquisar as alterações na inteligência / cognição dos pacientes com esclerose múltipla. O estudo chamado COGIMUS (Cognitive Impairment in Multiple Sclerosis) contou com os principais centros e realizou uma publicação na revista Multiple Sclerosis que mostrou 20% de pacientes com alteração nos testes neuropsicológicos e correlacionou as alterações com o volume de lesões intracranianas pela Ressonância Magnética e escalas clínicas como o EDSS.
Ainda existem críticas a essa pesquisa pois além das lesões intracranianas outras coisas como depressão podem influenciar o desempenho na avaliação neuropsicológica. Além disso, é muito importante diferenciar um desempenho ruim nos testes de avaliação neuropsicológicos de comprometimento na vida do paciente decorrente disso. Esses estudos avaliaram testes apenas, e não desempenho no dia-a-dia!
As principais alterações decorrentes são:
  • Alteração de memória;
  • Dificuldade com organização e planejamento;
  • Lentificação do pensamento;
  • Dificuldade de manter atenção quando utilizadas técnicas de distração.
É como se o cérebro do paciente fosse um arquivo desorganizado. A informação está lá e ele encontra, mas de forma muito mais lenta.
Essas alterações, mesmo quando presentes, nem sempre trazem prejuízo para as atividades e desempenho profissional do paciente. O paciente que comentei no começo tem uma alteração na avaliação neuropsicológica compatível com o que comentamos, mas mantém um excelente desempenho no dia-a-dia e é inclusive um membro iminente da sociedade e em sua profissão!
Na nova era com medicações de alta potência ainda estamos por ver o que acontecerá depois de 10 anos com a doença melhor controlada. De acordo com os estudos do COGIMUS podemos inferir que quanto melhor controlada a doença, maior as chances de manter intactas as funções mentais.
Além disso existem vários tratamentos que podem ser feitos nos casos de alteração da inteligência/ cognição para os pacientes com alterações. Os principais são com Amantadina, Modafilina, Metilfenidato, Donepezila e Rivastigmina, além da chamada reabilitação cognitiva, que são técnicas semelhantes a “fisioterapia para mente”.
Enfim, se existir alguma suspeita de alteração da inteligência/cognição, converse com seu neurologista.
Eu vejo excelentes perspectivas para o futuro!
Até breve.
Fontes:



Sites com informações sobre esclerose múltipla

http://www.esclerosemultipla.med.br/a-esclerose-multipla/

http://abem.org.br/esclerose/o-que-e-esclerose-multipla/

http://blogesclerosemultipla.com.br/category/esclerose-multipla/

http://esclerosemultipla.com.br/sobre-em/diagnostico-esclerose-multipla/







terça-feira, 8 de novembro de 2016

“Meu” bosque


Eu moro ao lado de um bosque de reflorestamento. As árvores quase que entram com seus galhos pelas janelas e pela varanda. Além de garantir um clima mais fresco, o bosque faz as vezes de meu mundo.






Eu gostaria de viajar, conhecer lugares como a Serra da Capivara, Belém do Pará, Florianópolis, mas minha dificuldade para caminhar e para permanecer em pé e os problemas causados por extremos de temperatura acabam me desanimando. Então minhas viagens são feitas na contemplação desse bosque, com suas aves maravilhosas cujos cantos eu me exercito em reconhecer – sabiá, sanhaçu, saíra, tucano, alma-de-gato, anu... No mês passado vimos um grande teiu saindo do bosque e visitando o prédio. Hoje, uma dupla de macacos-prego pulava nas árvores. Tenho colocado frutas na janela do escritório para ver os pássaros.


Ah, isso não substitui as viagens!”, alguém dirá. Não se trata de substituir, mas de lidar com aquilo que se tem. É o meu ideal de simplicidade, de descomplicar a vida. Sinto-me feliz assim, com meu cachorro louco, os pássaros que vêm comer na minha janela, o canto das cigarras... Essa é a minha descoberta do mundo.


Hoje cedo a EM me causou uma grande tristeza (depois escreverei sobre isso), mas quando eu cheguei em casa vi macacos no “meu” bosque e uma pomba com seu filhotinho no ninho, coisas simples que me trazem tranquilidade nas situações difíceis provocadas pela doença.  




Às vezes me acho meio Poliana em relação à EM. Só acho que não vale a pena ficar brigando contra o que não depende de mim para melhorar. De ansioso aqui em casa basta o Oto!













sábado, 5 de novembro de 2016

Como a esclerose múltipla entrou na minha vida – segunda parte

O dr. Chico Louco havia pedido uma ressonância magnética de emergência porque suspeitava que minha dor de cabeça e as manchas que apareceram na tomografia do crânio indicassem tumores. Fui sozinha fazer a ressonância e também sozinha fui buscar o resultado.

Abri o exame no laboratório mesmo e vi escrito “lesões desmielinizantes sugestivas de esclerose múltipla”. Não eram tumores. Mas poderia ser esclerose múltipla. Isso era bom? Quer dizer, seria melhor se fossem tumores?

As referências que eu tinha de EM era de uma paciente na época em que eu estudava enfermagem. Ela devia estar em surto e não tinha movimentos nem de pernas nem de braços. Tive também um professor na PUC, quando estudava filosofia, que tinha EM. Ele era cadeirante, não falava muito sobre a doença, tomava café e fumava como se não houvesse amanhã.

Cadeira de rodas. Falta de movimentos. Era isso que significava EM? Eu estava completamente confusa. Procurei a definição no celular e vi: ”doença neurológica autoimune degenerativa, causa de deficiência mais comum em jovens adultos”. Não, eu não tinha isso! Eu andava, me movia. Disse para o dr. Chico Louco que eu não tinha sintomas de EM (na verdade eu tinha vários, mas não os reconhecia como sintomas). Disse para ele: “Eu estava lá na sala de espera fazendo crochê! Eu não tenho sintomas!”.

O médico pediu vários outros exames que confirmaram a EM, mas não soube me explicar porque eu não tinha sintomas*. Disse apenas que dava para viver com isso, que o tratamento era muito caro e que não queríamos causar esse gasto ao SUS.

***

Eu estava lá na sala de espera fazendo crochê! Eu tenho mais medo de perder o movimento dos braços do que da cadeira de rodas! Meu primeiro surto, na verdade o único que foi bem característico de um surto de EM, embora não tivesse sido diagnosticado na época, foi exatamente uma fraqueza muscular no braço esquerdo, que me deixou uma sequela.

“Eu estava lá na sala de espera fazendo crochê!” foi a negação de uma doença. Eu estava me movendo, por isso não tinha EM!

A aceitação veio aos poucos, quando eu passei a conhecer a EM e percebi que vários males com os quais eu vinha lidando durante muito tempo tinham uma causa e um nome. É mais fácil enfrentar aquilo que se conhece.

***

Quanto ao crochê, eu continuo fazendo, agora como uma afirmação: eu posso mover meus braços!


* A minha EM é do tipo surto-remissão. A maioria dos meus surtos passaram despercebidos ou mascarados por crises de depressão que os acompanharam. Eu tinha sequelas desses surtos e vim a saber disso quando fui atendida no HC de Ribeirão Preto. Quando eu fiz a ressonância, estava na fase de remissão, ou seja, sem atividade da doença.

Gatos...

Minha inspiração de hoje é o gato da poesia de T. S. Eliot, The Run Tum Tugger, no seu Old Possum’s Books of Pratical Cats:
The Rum Tum Tugger is a terrible bore:
When you let him in, then he wants to be out;
He's always on the wrong side of every door,
And as soon as he's at home, he'd like to get about.

Em tradução livre:
Rum Tum Tugger é um aborrecimento terrível:
Quando você o deixa entrar, ele quer sair;
Ele está sempre do lado errado de cada porta,
E tão logo chega em casa, já quer sair para passear.


 



Essa sensação de inadaptação, de estar sempre do lado errado de cada porta, tem me acompanhado desde que tenho sentido com mais força os sintomas da EM. A fadiga, as dificuldades cognitivas como problemas de memória e falta de atenção, a própria dificuldade para caminhar ou permanecer em pé me fazem uma pessoa mais arredia. Eu, que sou naturalmente tímida, tenho ficado muito sozinha. Tenho vontade de sair, mas me sinto mal. É como se eu necessitasse de períodos de descanso também durante as conversas e as situações sociais. Talvez eu precise contar mais como me sinto para que os amigos saibam porque pareço tão arisca, mas se me oferecem um café com um pouco de paciência, verão que sou bem sociável.

Um pouco mais da ambiguidade felina nesse poema-comédia que traduzi livremente em 97, em homenagem à gata Nina.



Solilóquio do gato de Hamlet
 escrito pelo gato de Shakespeare

Ir para fora, e talvez ficar lá
ou permanecer aqui dentro, eis a questão:
se é melhor para um gato agüentar
os tapas e golpes do tempo inclemente
que a natureza chove sobre aqueles que perambulam fora de casa,
ou tirar um cochilo num cantinho do tapete
e, ressonando, fundir as horas sólidas
que entopem com tempo sombrio as brilhantes engrenagens do relógio,
e ficar esperando o sino do jantar. Sentar; contemplar
o lado de  fora;  em um olhar exprimir
um desejo de se aventurar sem demora,
e então, quando a porta se abrir, ficar parado
como que transfixado pela dúvida. Espreitar; dormir;
sair sem saber quando poderemos outra vez
retornar; e há a bola de lã...;
pois se as patas fossem feitas para desmanchar um nó
ou abrir uma fechadura ou deslizar a trava de uma janela,
e sair e voltar fosse tão simples
como quebrar uma tigela,
que gato iria tolerar os mesquinhos aborrecimentos domésticos,
os pontapés certeiros da cozinheira, a vassoura do mordomo,
os cutucões descuidados das crianças, as carícias nas orelhas,
os pisões no rabo e todos os distúrbios diários
dos quais os pelos são legatários? Se, por sua própria conta,
ele pudesse realizar seu êxodo e regresso,
que gato temeria os cães de raça,
ou tomaria cuidado ao atravessar o jardim do vizinho?
Se não fosse o medo de nossos gritos despercebidos
e dos arranhões em uma porta trancada
que nenhuma garra pode abrir,
quem iria preferir suportar nossas faltas humanas
em vez de fugir para misérias inimaginadas?
Assim, a precaução faz de todos nós gatos domésticos;
e os pelos eriçados da resolução
são amaciados pela pálida escova do pensamento,
e quando nossas escolhas trazem cargas tão penosas,
hesitamos no limiar da decisão.

Henry Beard
Hamlet’s Cat’s Soliloquy, from Hamlet’s Cat
Poetry for Cats
Tradução livre -  Eliane C. Souza
14.11.97












sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Por que falar da esclerose múltipla?

Algumas pessoas consideram que falar de EM é se expor demais. Já li em grupos de EM postagens de pessoas que escondem o diagnóstico no local de trabalho ou dos próprios amigos. Há um certo sentido nisso se pensamos em preconceito ou em vergonha de alguns sintomas constrangedores que a doença pode trazer. O medo de se expor será então o medo de ser julgado por algo que a maioria das pessoas desconhece.

Eu falo abertamente sobre a doença. Poderia não falar, já que meus sintomas são quase imperceptíveis aos outros. Eu poderia não me expor, mas eu falo para os meus colegas, para os meus alunos e até no Facebook.

Há uma função terapêutica em falar, em compartilhar o medo da doença, os sintomas, as incertezas... A psicologia explica isso. Porém, não é só por esse lado terapêutico da própria fala que eu falo/escrevo. Eu quero que as pessoas que convivem comigo saibam o que é essa doença invisível.

O que eu mais ouço da família, amigos, colegas é: “você parece tão bem!”. Aí é importante dizer que a EM não é uma doença debilitante. Ela é incapacitante. Ainda bem que a minha esclerose múltipla quase não aparece! Mas ela é bastante sensível a mim e a todas as pessoas que diariamente lidam com seus sintomas. Costumo dizer que é uma doença nada monótona, é um festival que inventa sintomas às vezes indescritíveis. Ela se manifesta cada dia de um modo, cria dormências em locais que só seriam sentidos em condições muitíssimo especiais, dores que se misturam com frio e que não dá nem para nomear, dificuldades que aparecem e desaparecem. Alguns dias eu fico cansada de me mover, de olhar, de pensar. Pior do que isso, fico cansada do movimento do mundo e dos meus sentimentos e fico cansada de ter que criar estratégias para lidar com isso.


Felizmente eu pareço estar bem e estou, na medida do possível! Eu me cuido e conto com o apoio dos excelentes neurologistas do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, da minha fisioterapeuta, do meu psicólogo, dos meus familiares, amigos e colegas.

Eu falo da esclerose múltipla para mostrar essa doença que se esconde aos olhos dos outros. Não falo para causar consternação, mas para revelar que, mesmo que eu pareça bem, até as atividades simples para mim são mais difíceis do que são para as outras pessoas. É uma coisa por vez, devagar e sempre. Só faço uma coisa importante por dia. Para tudo, tenho que prever um tempo de descanso.

Falar sobre a doença tem uma função educativa, porque é muito fácil considerar que uma pessoa deficiente tem privilégios, ainda mais quando a deficiência não aparece (mais para frente vou falar da fadiga como deficiência). É muito fácil considerar que uma pessoa com doença invisível e fatigante é preguiçosa ou não tem força de vontade.


Força de vontade é o que eu mais tenho. Não tenho é força muscular, mesmo!

















quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Entrelaçamento

Eu fiz essa postagem no Facebook há algum tempo, mas acho que ela merece estar aqui. 

Para Platão, a Filosofia nasce do entrelaçamento (symplokê) das ideias. Meus estudos sobre Platão são uma tentativa de entender a estrutura entrelaçada do mundo e da linguagem.
Há algum tempo, esses estudos entraram em um ritmo mais lento, devido a uma fadiga que recentemente recebeu um nome: esclerose múltipla.
Agora, estou aprendendo a viver com a doença e com o tratamento, a conciliar o trabalho com a fadiga. Quando os músculos e o pensamento pedem descanso, eu faço crochê, que é uma poética maneira de entrelaçar.

Como a esclerose múltipla entrou na minha vida.

O nome "esclerose múltipla" entrou na minha vida por acaso, como um achado em uma ressonância que procurava outra coisa. Em janeiro de 2012, eu comecei a ter acessos de cefaleia intensa e diária. Procurei um neurologista e ele falou em enxaqueca. Comecei o tratamento e a dor não passou. Não consegui horário para retorno com o mesmo médico e passei a me consultar com um médico conhecido na cidade como Chico Louco. Ele pediu uma tomografia do cérebro, onde apareceram umas manchas. Segundo o médico, poderia ter uns tumores de vasos sanguíneos no cérebro, chamados cavernomas, e que um deles deveria ter se rompido. Pediu então uma ressonância de urgência e disse que eu me preparasse para uma cirurgia. A RM, no entanto, não acusou cavernomas, acusou lesões desmielinizantes sugestivas de EM.

Quando eu li as palavras "esclerose múltipla" no laudo da RM, minha primeira atitude foi de negação, afinal eu achava que não tinha nenhum sintoma. EM, para mim, significava exclusivamente dificuldade de mobilidade. Depois me lembrei que em 2000 eu havia tido um episódio de dificuldade de mobilidade no braço esquerdo, mas não foi uma paralisia, foi uma dificuldade para levantar o braço, que melhorava após repouso. Lembrei também de que caia muito, às vezes minha perna esquerda fraquejava quando eu caminhava. Nessa época, eu enfrentava uma forte crise de depressão que durou alguns anos (de 97 a 2001) e achava que todas essas coisas eram sintomas da depressão.  Senti essa dificuldade de movimentação no braço outras vezes, geralmente após fazer muito esforço, e achava que era resultado de um problema que eu tinha na cervical. Em 2006-2007, tive outra crise forte de depressão, que não respondia a tratamento. O médico chegou a diagnosticar transtorno bipolar. Um dia, dei uma topada com o pé na parede e um tempo depois soube que quebrei o dedo do pé nessa batida, mas eu não havia sentido dor. Para mim, era tudo culpa da depressão.

Em 2007 me mudei para São Carlos, procurei novo psiquiatra e ele achou que eu não tinha transtorno bipolar. Meu diagnóstico foi depressão breve recorrente. Eu estava indo bem com o antidepressivo. Comecei a fazer musculação, mas depois de 1 ano e meio tive que parar por causa de dor muscular, que o ortopedista não identificou a origem. Acho que era o início da fadiga. Ela, a fadiga, já tinha mostrado sua cara desde o surto de depressão em 2007 e vinha crescendo devagarzinho, sempre disfarçada de depressão.  Também tinha dificuldades de memória e de reflexos – culpa do antidepressivo!, eu pensava – e uma leve incontinência urinária – deve ser culpa do climatério, claro!

Voltando a 2012, o dr. Chico Louco falou que o tratamento custaria muito caro ao SUS e que ele não queria causar esse gasto. Eu procurei que me atendeu durante 1 ano e meio sem fechar o diagnóstico. Em 2013, comecei a ter sintomas neurológicos: dormências, fraqueza muscular, dor neuropática. Consegui então encaminhamento para a clínica de EM do HC de Ribeirão Preto.

O atendimento é maravilhoso! Cada consulta dura pelo menos 1 hora e meia e o diagnóstico foi fechado já na primeira consulta. Lá eu fiquei sabendo que o meu braço bobo é sequela do surto de fraqueza muscular que eu tive em 2000. Fiquei sabendo também que tenho uma sequela de fraqueza muscular na perna esquerda (que eu nem tinha me dado conta antes!) e que muitas das coisas que eu sentia há tempo eram sintomas da EM, como a dificuldade para me levantar quando estou sentada (eu achava que era por estar acima do peso), a fadiga que eu confundia com depressão, os tropeções que eu sempre dava. Como eu nunca tive um surto muito característico e meus surtos sempre foram acompanhados de depressão, eu nunca dei atenção a eles, e sempre encontrei uma explicação para as sequelas que eles deixaram.

Comecei o tratamento e faço pilates com uma fisioterapeuta em sessões individuais 2 vezes por semana. Apesar do tratamento, a doença tem progredido lentamente.

Esta postagem ficou muito narrativa, mas eu queria falar do começo de tudo. As próximas postagens conterão mais reflexões do que narrações.  

E para não ficar tudo muito pesado, vai uma foto tirada na tranquilidade de um sábado de manhã.

Pensei em fazer um blog para falar de minhas experiências com a esclerose múltipla, mas como esclerose múltipla não me define, este é antes de tudo um blog para falar de saúde, de qualidade de vida, de simplicidade voluntária, dos desafios de enfrentar uma doença incapacitante e continuar trabalhando. Outros assuntos irão aparecer por aqui, como universidade, filosofia, Oto - o cachorro doido e até crochê. É um espaço para pensamentos livres, para contar estórias. E como a esclerose múltipla se apresenta diariamente na minha vida, ela vai aparecer bastante por aqui.